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quarta-feira, junho 21, 2006

O Vestido de Maristânea




Quando o padre Anatólio colocou os dois pés no chão de pedras polidas, uma chuva mansa e tranqüila anunciou a abertura da porta dos céus para Anelise. Maristânea não conseguia se concentrar em mais nada, pois não tirara os olhos de cima da amiga vestida de noiva de Jesus naquele caixão de flores amarelas. Seria uma mentirosa, pois Deus sabe tudo, mesmo o mais escondido. E ele viu quando o Virgílio a levou pra trás da mangueira naquela tarde, e como ele fez que era só um beijo, depois outro e quando não sentia mais os pés no chão e não queria mais voltar, porque tudo o que mais desejava naquela hora era que não acabasse aquilo nunca. E Deus sabia. E ia se apresentar a ele com vestido branco e uma cara de mentirosa. E foi nessa hora que começou a escutar o choro de vergonha de Anelise, que era sua amiga e sabia que era atrás do pé de manga que o mundo começava. E sentiu o maior medo da sua vida, ser enterrada com vestido de noiva.
O único que não compareceu ao cortejo foi Seu Amador, pai de Maristânea. Aproveitou para se refugiar no quarto secreto em que guardava suas riquezas e seus fetos machos embalsamados. Em toda vida, com todas as mulheres com que se deitou, só conseguiu que vingassem as fêmeas. Seus filhos machos morriam no ventre, por vontade de Deus ou mandinga dos inimigos, com menos de dois meses de gestação. Contava os centavos que faltavam para o pagamento dos empregados do armazém, dos peões e do cabra que lhe salvara a vida em mais de duas oportunidades. E pensava baixo, para não acordar seus filhos colhões, nas duas grandes certezas da vida: a morte e a solidão.
E, de repente, tudo ficou claro. Como numa iluminação pagã, Maristânea via a todos: dona Evelásia carregando o filho escolar em suas roupas de boneca; os irmãos Albuquerque, gêmeos idênticos, exceto pelo mais velho gostar de homens, o que causava milagrosos estigmas no segundo, que era o coroinha preferido do pároco; Luanda, a dona da pensão, em cuja cama o padre Anatólio costumava aparecer sem camisas nas noites em que o calor se tornava insuportável e o sonambulismo o dominava; e Antônia, a amante eterna do seu pai. Maristânea compreendeu que todos, suas diferenças, excentricidades, tudo era para tentar enganar o inevitável. Uma existência sem sentido, perdida entre as montanhas do vale e destinada a ser enterrada e a virar esterco para esse ciclo de coisa alguma que era a vida em Estrela. E uma sensação estranha e inédita se apoderou dela. Um estado de espírito que não podia ser outra coisa senão o sentimento de liberdade, capaz de livrar-lhe do medo mais íntimo e universal do ser humano, o medo da morte.

No domingo ia para Santa Maria completar seus estudos. Arrumava as malas com olhos de natal. Devia tudo a Anelise e aos presságios de Dona Mercês, que viu as duas amigas de infância num trem azul comendo nuvens açucaradas, o que ela logo relacionou com a morte e preveniu sua mãe, uma católica fervorosa que nunca deixou de seguir os conselhos da velha bruxa.

— Você não vai mais – disse a mãe de Maristânea, puxando seu braço com força para perto de si – não no mesmo ônibus que essa puta!
Antônia permanecia quieta, olhando tudo de cima do carro. E era com esse olhar que matava a cada dia, a cada encontro, a esposa de Seu Amador. Porque amante tinha de se envergonhar, tinha de ter aquele olhar fugidio e culpado das cadelas pedintes como ela. Mas essa não! Seu olhar superior dizia que a culpa era da esposa religiosa que não beijava com a boca aberta, que não procurava a força do seu homem nas noites quentes, nos lençóis úmidos de desejo e que não aplacava com a boca, a buceta, ou seja lá o que for, aquele pedaço de carne infame que queria derrubar tudo o que encontrava pela frente, para saciar sua fúria colossal. E Dona Marta se mortificava a cada dia, imaginando o que ela fazia com seu marido naquele quarto de periferia, quando Seu Amador não voltava pra casa. Nessas noites, ela rolava na cama até o amanhecer, se mortificando. E quando encontrava a amante no outro dia, de vestido solto, sorriso cerrado, olhar de matrona, queria que a puta morresse. Era esse olhar superior, esse sorriso vitorioso que Dona Marta não agüentava e era por isso que a filha não iria viajar no mesmo carro que aquela vadia.
— E que essa carroça vire e te mande para o inferno, sua desgraçada!


Mas era impossível tentar evitar o que os presságios de Dona Mercês vaticinavam. E o carro que virou foi o que levava Maristânea. E a pobre menina já se encontrava de vestido de noiva dentro de seu caixãozinho branco quando o sol esturricava as almas do cemitério de Estrela. Um sol tão forte que algumas das senhoras de maior respeito da cidade, protegidas por seus chapéus de casamento, não deixavam de cochichar que era mesmo verdade que Seu Amador tinha vendido a alma da filha para conseguir tanta riqueza. E que a falta de chuva no cortejo era um aviso. Coitada da menina, tão boazinha, nunca vai descansar em paz por culpa do pai. Mas quando os primeiros passos foram dados pelo padre em direção ao cemitério, uma nuvem escureceu o dia e o vento que a acompanhava levantou algumas saias por onde passou e uma chuva torrencial, como há muito não se via, desabou sobre o cortejo e desceu sobre todos como um aviso divino ou como para lavar as pedras do chão.

sábado, abril 08, 2006

as horas



houve um tempo em que o dia tinha 20 horas. e de tanto pedirem, para ter mais tempo para descansar, distrair-se, ou simplesmente ficar à toa, deus fez mais quatro horas. assim, o dia passou a ter 24 horas inteiras entre um e outro pôr do sol.
hoje, ouvi uma amiga dizer que o dia tinha de ter 30 horas, para que ela fizesse tudo o que tinha de fazer e ainda descansar, cuidar do filho, ir ao cinema, enfim, viver...
e eu fiquei pensando: se o dia fosse seis horas maior, será que eu iria aproveitá-lo como deveria? ou iria aumentar minha carga de trabalho e ficar pedindo a deus mais umas quatro horinhas? êta vida besta, meu deus...

domingo, março 05, 2006

Contracampanha





Muito bem, esta' iniciada a contracampanha:

"Eu amo BH placidamente."

sábado, março 04, 2006

Inevitável



é difícil admitir, mas no fundo todos somos meros atores do inevitável.

terça-feira, fevereiro 28, 2006

Trepadeiras



Hoje amontoam-se coisas, filmes, pessoas. Amontoam-se vidas e a gente vai seguindo meio sem rumo, sem vontade. Guiados pela biologia, que tenta a auto-preservação a todo custo.

As coisas andam tão superficiais... talvez, por isso, eu esteja tão à flor da pele. Que ninguém mais dá valor ao pensar. O exercício de refletir a vida não é mais uma dádiva dos sábios, mas um defeito dos sonhadores. E a gente simplória ganha terreno. Como trepadeiras, vão amarrando as engrenagens dos sonhos, sufocando o subjetivo da vida até prendê-la ao chão, como um galho seco e sem seiva.

E logo percebo, repensando a vida como um “ladrão de cataventos”, que essas pessoas são as que sofrem menos. A ignorância as liberta da angustiante busca pelo sentido de ser. E elas continuam trabalhando e consumindo, e consumindo e se entregando, pra esquecer da dor que é viver.

E nem têm tempo de apreciar uma bela pintura...



van gogh


segunda-feira, fevereiro 27, 2006



essa é a foto que uma amiga tirou da torre. esse carro aí à direita quase a atropelou, enquanto ela fazia contorcionismos no chão para conseguir o melhor ângulo.

ela é do tipo que se arrisca por uma boa foto. é do tipo que fala da vida com o olhar brilhando e o sorriso solto...

eu amo as pessoas que arriscam a vida por uma boa foto.


sábado, fevereiro 25, 2006


"... ela não chegou a viver mais que três meses. nasceu com um problema genético e o coração não resistiu. muitas vezes, quando estou mais só, penso que ela se transformou num anjo distraído, que toma conta dos que têm alma de poeta"

Todos instáveis



"quando Roberta chegou, suas asas brilhando azuis por todos os lados, não resisti. Agarrei-a pelos cabelos, puxei seu colo em minha direção, mordi seus mamilos com cruel delicadeza... ela nem teve tempo de dizer que os anjos não tinham sexo"

ELA: Era para ser assim?
ELE: Não, no final a gente terminava com um beijo selando o nosso amor.
ELA: Mas por quê mudou o final? As pessoas gostam de finais felizes... vende mais.
ELE: Você acredita em finais felizes?
ELA: Se chegou ao final é porque acabou-se a felicidade (tempo, ela olha pra cima como se recordasse, e continua) felicidade e final não combinam.
ELE: Quando foi que você começou a ficar irônica?
ELA: Quando a inocência morreu.
ELE: Mas você disse que tinha perdoado, que devíamos passar uma borracha, que aquela tinha sido apenas uma aventura, coisa de homem...
ELA: Nunca racionalize o que não é racional.